Brasil Energia – Burocracia, insegurança e competitividade cercam o descomissionamento no Brasil

FPSO Cidade do Rio de Janeiro, que operou no campo de Espadarte, da Petrobras / Fonte: Marinha do Brasil

Há dúvidas sobre o tratamento tributário do Repetro e a capacidade dos estaleiros, que esbarram mais uma vez na falta de competitividade


Na ponta da cadeia de descomissionamento, o desmantelamento de embarcações em estaleiros brasileiros enfrenta não só a competitividade dos mercados internacionais, mas também incertezas relacionadas à capacidade da indústria nacional e ao tratamento tributário de bens trazidos ao país sob o Repetro.

Passados pouco mais de 20 anos após as primeiras instalações destinadas à indústria de óleo e gás entrarem no Brasil dentro do regime, chegou o momento de pensar em como descomissioná-las. No entanto, operadores atribuem certa insegurança jurídica ao desmantelamento de equipamentos que estão dentro do regime, principalmente de FPSOs – o crème de la crème do mercado de descomissionamento.

Ao longo desses anos, grande parcela dos FPSOs que entraram no Brasil vieram sob o Repetro. Até 2022, a ANP conta pelo menos três unidades que serão descomissionadas: FPSO Fluminense, que opera em Bijupirá e Salema, na Bacia de Campos; P-32, no campo de Marlim, também em Campos; e Piranema Spirit, no campo de Piranema, na Bacia de Sergipe-Alagoas.

Criado em 1999, o Repetro é um regime aduaneiro especial, que prevê a suspensão dos tributos de importação de bens destinados à indústria de óleo e gás. Dessa forma, os equipamentos trazidos ao Brasil, incluindo os FPSOs, não são nacionalizados, mas estariam no país na qualidade de bens estrangeiros de forma temporária – depois, em 2017, a regra foi alterada para incluir bens permanentes.

O receio das empresas de E&P reside em uma eventual nacionalização dos bens durante o descomissionamento, o que levaria a Receita Federal a cobrar os impostos suspensos na entrada do equipamento no Brasil. Os custos seriam especialmente maiores no caso de FPSOs.

Para o advogado André Carvalho, do escritório Veirano, essa é uma percepção equivocada. “Nós não vemos uma necessidade de nacionalização da unidade para que ela seja destruída aqui, e tampouco o fato da destruição ser feita em um estaleiro nacional vai gerar um risco de [cobrança do] ICMS que ficou suspenso lá atrás”, divergiu.

Não existe regra específica para o descomissionamento de ativos do Repetro na Receita Federal, mas é possível extinguir o regime sem a cobrança dos impostos suspensos. No caso de desmantelamento das unidades, isso se daria por meio da destruição sob controle aduaneiro ou da reexportação dos bens. No primeiro caso, a destruição seria feita no Brasil, enquanto no segundo a embarcação deixaria o país para ser destruída em outro local.

Acontece que, por mais que os impostos não sejam cobrados, a burocracia para a destruição sob controle aduaneiro pode ser sim uma fonte de insegurança. Segundo o advogado Tiago Severini, do escritório Vieira Rezende, o processo envolve: a comunicação à Receita de que a empresa quer destruir o bem; contratação de uma empresa especializada; autorização do Ibama para a empresa que realizará o processo, a atividade de descomissionamento e o local onde será feita a destruição; submissão de documentação à Receita para análise e aprovação; e envio de um fiscal da Receita para acompanhar o processo.

Por último, quando a destruição é concluída, é necessário que um perito credenciado pelo órgão avalie a sucata para definir o que tem finalidade comercial, o que, caso se confirme, requer um laudo para a constatação do preço, de acordo com o advogado. A Receita, então, recolheria os impostos de nacionalização tendo as sobras do processo como base de cálculo. É possível ainda reexportar a sucata, sem cobrança de impostos.

“Além de ser muito mais longo aqui no Brasil, há esse problema todo de custo e burocracia, comparado com essa exportação que é feita e já resolve o problema”, declarou Severini.

Questionada pela Brasil Energia sobre a possibilidade de simplificação desse processo, a Receita Federal declarou que ele já foi “bastante simplificado” em relação às normativas anteriores. “O crescimento de descomissionamentos, portanto, não afetará a qualidade, o controle e a rapidez do despacho aduaneiro”.

Além da burocracia, Severini declarou que percebe mais insegurança do mercado para realizar o procedimento. “Muitos dos pontos que se levantam sobre fragilidades de regulação ou, por exemplo, esses custos de nacionalização do bem, são um pouco por falta de experiências práticas nesse tipo de operação. Nós temos realmente uma deficiência por ser bastante burocrático, mas não acho que, em termos de custos, seja um cenário tão diferente do que acontece em outros países”, declarou o advogado, que defende melhorias na regulação para torná-la mais clara e segura.

Outra dúvida no setor é a destruição de um bem que foi transferido para o Repetro-Sped – regulação mais recente, que prorrogou a vigência do Repetro até 2040 e criou as categorias de bens temporários (sob regime aduaneiro) e permanentes (tributário). O regime estabelece ainda redução à alíquota zero da carga tributária federal suspensa após cinco anos da incorporação do ativo. A incerteza se dá em relação ao prazo de cinco anos que o operador deveria esperar para destruir uma embarcação migrada para o Repetro-Sped.

O advogado André Carvalho estudou o tema para emitir opinião jurídica sobre o assunto, a pedido de um cliente. Segundo ele, um decreto da Presidência da República, datado de novembro de 2020, estabelece o prazo de cinco anos a partir de 1º de janeiro de 2018. Supondo que uma unidade foi migrada para o Repetro-Sped no final de 2020, conta-se o prazo de cinco anos a partir de 2018, estando a embarcação liberada para destruição, sem cobrança de impostos, a partir de 2023.

A previsão de descomissionamento foi incluída na instrução normativa do Repetro apenas no ano passado, para garantir prazo adicional de seis meses, com possibilidade de extensão por mais seis, para a desmobilização dos ativos. Mas esse por si só não é um fator para a extinção do regime.

“Acho que a Receita Federal não foi questionada diretamente, não houve casos práticos que fizessem com que ela precisasse se manifestar, esses casos acontecendo vai ser necessário sim mudarmos a IN [instrução normativa] do Repetro para ter uma previsão específica para o descomissionamento”, declarou a sócia de Tributário do Tauil & Chequer Advogados, Carolina Bottino. A advogada recomenda que as empresas que estiverem em vias de realizar o descomissionamento formulem consultas para a Receita, para instigá-la a rever a legislação.

Em todo caso, a recomendação é que os agentes mantenham interface próxima da Receita Federal, para garantir “a extinção do regime da melhor maneira possível”, disse o advogado Rodrigo Pinheiro, do escritório Schmidt Valois.

Pinheiro acrescentou ainda que a falta de previsão de benefícios fiscais para a contratação de serviços “pode ser danosa do ponto de vista financeiro no momento do descomissionamento”, que é intensivo de serviços. Segundo o advogado, caso seja contratada uma pessoa jurídica no exterior, a contratação será sujeita aos impostos atrelados à importação de serviços, que é muito onerada. “Quanto mais se puder aliviar o operador para realizar adequadamente a atividade de descomissionamento, melhor”, declarou o advogado, ressaltando que a atividade é realizada em um momento em que as despesas do ativo em questão são maiores que as receitas.

O mercado nacional

Do ponto de vista da capacidade, o debate gira em torno de se os estaleiros brasileiros teriam condições de realizar o desmantelamento, obedecendo às melhores práticas, contou a CEO do Estaleiro Atlântico Sul (EAS), Nicole Mattar Haddad Terpins, em entrevista à Brasil Energia. Atualmente em recuperação judicial, o EAS tem se movimentado para absorver parte da demanda por descomissionamentos no Brasil e, segundo a executiva, está trabalhando para obter a certificação.

Os planos do EAS não são uma tendência entre os estaleiros, que esbarram mais uma vez na questão da competitividade nacional. “Há regras que se deve seguir para o descomissionamento, poucos estaleiros hoje têm condições de fazer esses investimentos”, contou o vice-presidente Executivo do Sinaval, Sérgio Bacci, para quem esse mercado dificilmente renderá frutos no Brasil.

“Do mesmo jeito que temos dificuldade de ganhar obra para construir, para descomissionar é a mesma coisa, porque os custos de mão de obra e tributos são os mesmos, a não ser que a Petrobras decidisse que todos os descomissionamentos seriam feitos no Brasil por empresa brasileira”, ponderou o executivo. Segundo ele, sem incentivo para a indústria nacional, não será possível competir.

Terpins, do EAS, concorda com a necessidade de uma política nacional que incentive a indústria e gostaria de ver a Petrobras dando preferência à indústria nacional, na qualidade de empresa pública. Contudo, a executiva afirma que a demanda por descomissionamentos é real e que há outros ganhos na realização do processo no mercado interno.

“O que vai efetivamente garantir a competitividade da indústria nacional em relação a isso é a combinação de todos os fatores: qual a destinação que vai ser dada ao produto do desmantelamento; a capacidade dos estaleiros de fazer isso de uma forma safe and sound, ou seja, segura e correta do ponto de vista ambiental; o custo logístico para o transporte das plataformas até o estaleiro onde vão ser desmanteladas; o custo das embarcações que serão utilizadas para fazer o desmantelamento”, listou.

À Brasil Energia, Terpins contou que o EAS está tentando criar um modelo de negócios para torná-lo competitivo. O estaleiro está trabalhando com empresas siderúrgicas para desenvolver um mercado em torno da sucata decorrente das embarcações. “O ideal é que a destinação [da sucata] promova a reciclagem, a reutilização daqueles resíduos, e é um mercado ainda em desenvolvimento”, declarou.

Questionada pela reportagem se há previsão de priorizar o mercado nacional em descomissionamentos futuros, a Petrobras não respondeu. Até 2025, a estatal pretende descomissionar 18 plataformas, movimentando US$ 4,6 bilhões.

Segundo o painel dinâmico da ANP, a Petrobras já fez a remoção de pelo menos quatro FPSOs – Marlim Sul, Cidade do Rio de Janeiro, Cidade de Rio das Ostras e Brasil. A Brasil Energia perguntou à estatal sobre a destinação dos ativos, que respondeu que “as unidades citadas são afretadas, não sendo, portanto, de propriedade da Petrobras. A destinação das embarcações é de responsabilidade das respectivas proprietárias, que devem respeitar todas as legislações nacionais e internacionais pertinentes”. A Petrobras também já removeu as semissubmersíveis P-12 e P-27.

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